Entendendo a Medida Provisória 1.098/22

Fevereiro 2022 – 29ª edição

  • Em 27/01/22 foi publicada a medida provisória 1.098/22 que, em síntese, autoriza a Camex a determinar a imposição de retaliações em face de outros membros da OMC em situações específicas nas quais não tenha sido cumprida a determinação do painel pela contraparte. Você poderia explicar quais são os critérios a serem preenchidos para a imposição de uma medida desta natureza pelo Governo Brasileiro? Quais as similaridades ou relação da MP com a Regulação (UE) 2021/167 que autoriza a UE a tomar medidas quando uma disputa comercial estiver bloqueada no âmbito do OSC da OMC?

 

A MP 1.098/22 autoriza a CAMEX a retaliar Membros da OMC que se valham de recurso ao Órgão de Apelação (OA) da Organização, paralisado desde dezembro de 2019, a fim de impedir a resolução de um contencioso iniciado pelo Brasil. O OA é considerado um mecanismo importantíssimo da OMC. Sua paralisação, portanto, trouxe à tona ameaças à estabilidade das relações comerciais entre os Membros. Desde a paralisação do OA existe uma situação de limbo e a possibilidade de os Membros apelarem no vácuo (appeal into the void). 

Se uma decisão do painel for apelada, ela não poderá ser adotada até que a apelação seja concluída. Se houver apelação, mas essa fase não puder ser concluída, o caso permanece no limbo. 

Os critérios a serem preenchidos pelo país para imposição de medidas previstas pela nova MP devem observar as seguintes hipóteses de descumprimento de obrigações multilaterais por membro da OMC: 

I – quando o Brasil for autorizado pelo OSC da OMC a suspender a aplicação de concessões ou de outras obrigações para o referido membro previstas em acordos da OMC; ou; II – quando o relatório de grupo especial da OMC confirmar, no todo ou em parte, as alegações apresentadas pelo Brasil, na condição de parte demandante. 

Esta segunda hipótese deve observar: (a) a existência de apelação pelo membro da OMC, na condição de parte demandada, nos termos do disposto no Artigo 17 do Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias; (b) que a apelação não possa ser apreciada pelo OA ou o relatório deste último não possa ser aprovado pelo OSC; e (c) tenha decorrido o prazo de 60 dias após notificação Brasil ao Membro da OMC demandado sobre a intenção de suspensão de concessões ou de outras obrigações.

A nova MP se assemelha muito à Regulação da União Europeia (UE) 2021/167 publicada pelo Parlamento e Conselho europeu no último ano. A Regulação de 2021, que emenda a Regulação (EU) 654/2014 (sobre o exercício dos direitos da UE para a aplicação e cumprimento das regras de comércio internacional), prevê que a UE deverá poder suspender rapidamente concessões ou outras obrigações amparadas por acordos comerciais, incluindo acordos regionais ou bilaterais, se o recurso efetivo à solução de controvérsias vinculante não for possível porque o país terceiro não coopera para que tal recurso seja possível. 

Também dispõe que, sempre que sejam tomadas medidas para restringir o comércio com um país terceiro, tais medidas não devem exceder a anulação ou prejuízo do poder comercial da UE causados pelas medidas nesse país terceiro, em conformidade com as obrigações da UE ao abrigo do direito internacional.


  • O Brasil já possui ao menos 2 casos recentes nos quais houve posicionamento favorável do OSC, o caso do açúcar (DS 579) e o caso do frango (DS 484). Estes casos se enquadrariam nos requisitos da MP 1.098/22?

 

Sim, ambos os casos se enquadram, à priori, nos requisitos da MP 1.098/22. Em 22 de novembro de 2020 o OSC adotou o painel no caso de frangos, enquanto o painel no caso do açúcar foi circulado em 14 de dezembro de 2021. O Brasil saiu vencedor de ambos os contenciosos na fase de painel, mas ainda haveria a possibilidade de apelação tanto por parte do demandante como dos demandados. Em contenciosos perante a OMC é bastante normal (e quase que esperado) que se recorra dos aspectos jurídicos da decisão do painel na fase de apelação. 

 

Vale lembrar que a paralisação do OA e o risco de desprezo do sistema de solução de controvérsias afeta o Brasil significativamente. Nossa política é tradicionalmente defensora do multilateralismo e sempre prezamos por soluções alinhadas às regras e à negociação nesse âmbito. O órgão de apelação da OMC foi fundamental para os interesses da política externa comercial do Brasil desde o começo do seu funcionamento. Com efeito, o Brasil está entre os Membros da OMC que estão sendo afetados por essa crise, que sempre acionou o órgão na defesa dos interesses da indústria e, particularmente, do agronegócio do país, e é historicamente bem-sucedido em suas demandas.


  • De acordo com o noticiado pela imprensa, o Governo Brasileiro estaria tomando este posicionamento em razão da paralisação do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. O tema, no entanto, já havia sido previamente endereçado por uma alternativa mais diplomática, o MPIA, por meio do qual os países membros concordam com a realização de procedimento arbitral na ausência de quórum no OSC para avaliar as apelações. Você considera que esta medida seria um reconhecimento dos limites ou riscos da utilização do MPIA, haja vista que alguns membros podem ter optado por não se vincularem ao mecanismo justamente para evitar a implementação de decisões do OSC?

 

Face a inoperabilidade do OA desde dezembro de 2019, em 30 de abril de 2020, um grupo de 24 Membros da OMC notificou a organização da criação de um Multi-Party Interim Appeal Arrangement (MPIA) e sua intenção de recorrer ao uso desse mecanismo (que é, na prática, um acordo politico) para arbitrar quaisquer controvérsias da OMC entre si. Quando um caso envolvendo duas partes do MPIA surge na OMC, as partes apresentam uma notificação conjunta ao OSC de acordo com o Artigo 25 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias (ESC). O problema é que o MPIA funciona apenas entre os Membros que fazem parte deste sistema ad hoc. No caso do DS 484 e 579, enquanto o Brasil é parte do MPIA,Indonésia e Índia não aderiram ao sistema e, portanto, não há como fazer uso do único recurso atualmente funcionando para estes dois casos. 

Ademais, qualquer apelação para o paralisado OA nestes casos vão para uma situação de limbo ainda sem solução. O reconhecimento da competência do MPIA para resolver um caso específico depende da aceitação expressa dos países envolvidos na controvérsia. Especialmente Membros com políticas protecionistas parecem estar aproveitando esse vazio criado no OSC da OMC para recorrer ao órgão de apelação paralisado – um recurso vazio – quando perdem uma disputa de painel da OMC, uma vez que só pode ser avaliada após (e se) o órgão for recomposto. Sendo assim, entendo que a medida brasileira poderia ser sim um reconhecimento dos limites do MPIA, que, de fato, funciona apenas se as duas partes aderirem ao sistema.


  • Quais são as consequências da imposição de retaliações unilaterais para o Brasil perante os demais membros da OMC. Ao fazê-lo, o Brasil também estará sujeito a medidas similares por outros membros da organização? O que representa este posicionamento para o Governo Brasileiro em termos reputacionais no cenário internacional?

 

A imposição de retaliações unilaterais pelo Brasil (ou por qualquer Membro da OMC) é uma situação que foge à regra do ESC. Com efeito, o artigo 22 do ESC prevê a possibilidade de compensação e suspensão de concessões se aprovadas multilateralmente pelo OSC. Porém, o momento atual do sistema de solução de controvérsias da OMC é de exceção – jamais se havia previsto a paralisação (e talvez extinção) do OA, e o acordo politico MPIA é uma solução temporária limitada, inclusive porque não funciona para todos os membros da OMC, mas apenas para aqueles que aderirem ao sistema. 

Ao aprovar a MP 1.098/22 que, lembremos, é similar àquela Regulação adotada previamente pela UE, o Brasil pode ficar mais exposto a eventuais medidas unilaterais que possam ser aplicadas por outros Membros da OMC, mas acredito que este é um risco calculado. Ademais, precisamos ter claro que vivemos em tempos de exceção no mundo do comércio multilateral, e medidas como essa do Brasil serão, possivelmente, cada vez mais normalizadas, o que não é motivo de comemoração. Em termos reputacionais não acredito que a MP afetará a imagem do Brasil no cenário internacional. 

Este é um tema muito técnico e o Brasil continua, com sempre o fez, trabalhando com base em soluções negociadas para todos os litígios de que é parte, e tem claro compromisso com o sistema multilateral de comércio.


Entrevistada: Renata Amaral é advogada e tem vasta experiência em comércio internacional. Ela é fundadora da rede WIT e atua como uma consultora independente sobre temas de comércio internacional. Ela é professora visitante da American University Washington College of Law, membro independente do Conselho Consultivo do Setor Privado (CONEX) da CAMEX/ME.