Junho 2024 – 46ª edição
A Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI é uma agência da ONU criada em 1967 que visa “promover, por meio da cooperação internacional, a criação, disseminação, uso e proteção de trabalhos da mente humana para o progresso econômico, cultural e social.”[1]. Atualmente, a OMPI possui 193 estados-membros que cumprem pelo menos um dos três requisitos: (i) ser um membro da Convenção de Paris ou Convenção de Berna; (ii) ser um membro da ONU, de qualquer agência especializada da ONU, da International Atomic Energy Agency ou ser parte no Estatuto da Corte Internacional de Justiça; (iii) ser convidado pela Assembleia Geral da OMPI para compor a organização.
A atuação da OMPI em diferentes frentes no âmbito da propriedade intelectual possui relevante destaque no panorama global e, no dia 24 de maio de 2024, foi objeto de merecido reconhecimento por um importante desenvolvimento: depois de quase 25 anos de negociações sobre o tema, a Conferência Diplomática sobre Propriedade Intelectual, Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais culminou na assinatura do Tratado da OMPI que aborda a proteção de patentes que envolvam recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados.
As negociações que envolveram o Tratado foram marcadas pelo protagonismo do Brasil. A Conferência foi presidida pelo embaixador brasileiro Guilherme Aguiar Patriota, representante do Brasil na Organização Mundial do Comércio. A Conferência também contou com a participação de lideranças indígenas, como Daiara Tukano, que acompanhou a conferência como conselheira nacional de cultura e o cacique Ninawa Inu Huni Kiun[2]. O protagonismo do Brasil é em grande parte resultado da rica diversidade genética e cultural do país, que é reconhecido mundialmente pela biodiversidade e povos indígenas.
No plano internacional, a proteção dos recursos genéticos e conhecimentos associados de povos indígenas e tradicionais é objeto de acordos como a Convenção sobre a Diversidade Biológica, um tratado da Organização das Nações Unidas de 1992 que possui como um dos objetivos “a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos” e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007, que prevê, em seu artigo 31, o direito dos povos indígenas de “manter, controlar, proteger e desenvolver” seus conhecimentos tradicionais.
Entretanto, o Tratado da OMPI é o primeiro a dispor, especificamente, sobre a propriedade intelectual dos conhecimentos dos povos indígenas e comunidades locais, configurando assim um marco nas relações internacionais. Os objetivos do Tratado são (i) melhorar a eficácia, transparência e qualidade do sistema de patentes em relação aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e (ii) evitar a concessão de patentes ligadas a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais que não cumpram os requisitos da novidade e da atividade.
Aqui vale mencionar que para que uma matéria seja passível de proteção por patente, é preciso que consista em uma criação do espírito humano nova (que não esteja publicamente disponível), que apresente atividade inventiva (não seja óbvia ou evidente a partir de conhecimentos anteriores) e aplicação industrial. Recursos genéticos não são criações da mente humana (consistem em material genético presente em plantas, animais e microrganismos), não sendo, portanto, matéria patenteável. Entretanto, criações desenvolvidas a partir desses recursos podem ser protegidas. Da mesma forma, os conhecimentos tradicionais associados a esses recursos são comumente utilizados em pesquisas, podendo contribuir para o desenvolvimento de invenções patenteáveis. Um exemplo de recurso genético do Brasil é o guaraná, que se tornou mundialmente famoso em decorrência da aplicação de conhecimentos tradicionais do povo Sateré Mawé, que domesticou a planta e criou o seu processo de beneficiamento, possibilitando seu consumo nas mais diferentes formas[3].
Para o alcance dos objetivos, o Tratado possui alguns pontos que merecem destaque. Em primeiro lugar, o depositante de um pedido de patente baseado em recursos genéticos possui a obrigação de informar o país de origem/fonte dos recursos e, no caso dos conhecimentos tradicionais associados, o povo indígena ou comunidade local que originou tal conhecimento. Ainda, os países envolvidos devem estabelecer banco de dados que compilem os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais associados, que deve ser utilizado pelas entidades examinadoras de patentes, como o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) no Brasil, a fim de assegurar o cumprimento dos requisitos de patenteabilidade do pedido e o cumprimento do disposto no Tratado.
Atualmente, mais de 30 países possuem algum requisito de divulgação dos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais associados em que se baseiam uma patente, como é o caso do Brasil[4], que dispõe na Lei de Biodiversidade (Lei nº 13.123/2015), art. 47, que “a concessão de direito de propriedade intelectual pelo órgão competente sobre produto acabado ou sobre material reprodutivo obtido a partir de acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado fica condicionada ao cadastramento ou autorização”.
Apesar disso, os países ricos em biodiversidade ainda sofrem com práticas de outros países que exploram seus recursos genéticos e conhecimentos tradicionais e não possuem sistemas que regulem essa prática (ou possuem sistemas pouco eficazes). O Tratado, portanto, cria uma uniformidade em termos da regulamentação sobre o tema, e representa um marco pelo reconhecimento da importância desses ativos para a inovação tecnológica global, bem como fortalece os mecanismos de repartição de benefícios em sede nacional. Ademais, as obrigações previstas no Tratado relacionadas à divulgação das informações sobre recursos genéticos e conhecimentos tradicionais utilizados consiste em uma importante ferramenta para a prevenção da biopirataria.
O Tratado foi assinado por 29 países e adotado por consenso por outros 176 países e entrará em vigor três meses após pelo menos 15 Estados-membro depositarem seus instrumentos de ratificação. No Brasil, é necessário que o Tratado seja aprovado pelo Congresso Nacional. Com a entrada em vigor, passa a ser dever dos países signatários incorporarem as disposições do Tratado em suas legislações internas e estabelecerem medidas adequadas em caso de violação.
[1] https://www.gov.br/mre/pt-br/delbrasomc/brasil-e-ompi/brasil-e-ompi
[2] https://brasil.un.org/pt-br/268855-artigo-uma-confer%C3%AAncia-diplom%C3%A1tica-para-chamar-de-nossa
[3] Conforme publicação do Instagram do Museu do Indio: https://www.instagram.com/museudoindiorj/p/C6q6iobO8lD/?locale=en-TH&img_index=1
[4] https://www.wipo.int/publications/en/details.jsp?id=4498
Autoras:
Luiza Tângari é mestre pela Universidade de Cambridge e especialista em propriedade intelectual pela Organização da Propriedade Intelectual – OMPI e pela Universidade da África do Sul. É sócia do Madrona Fialho Salles Advogados, vice-presidente do subcomitê de marcas da IBA e representante seccional de Minas Gerais da ABPI.
Luísa Naves é bacharel em administração pela SKEMA Business School, e bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É especialista em mediação e negociação na London School of Economics and Political Science (LSE) e realizou diversos cursos na Academia da OMPI.