A quebra das patentes para as vacinas contra a Covid-19

Maio 2021 – 23ª edição

  1. A discussão sobre flexibilização de direitos de propriedade intelectual relacionados às vacinas da COVID ganhou um novo impulso após os EUA se mostrarem favoráveis a tratar do tema. Como isso impacta as negociações na OMC e o que é preciso para que os países cheguem a um consenso na organização?

 

Qualquer posição dos EUA na agenda do comércio internacional tende a ser impactante, por sua posição de liderança, mas nesse caso o impacto pode ser mais significativo porque a postura em prol da flexibilização dos direitos de propriedade intelectual rompe com posicionamentos que são tradicionalmente em favor da adoção de padrões bastante rigorosos de proteção desses direitos. Até mesmo sob uma perspectiva moral, isso pode levar vários países que a princípio se opuseram à discussão a questionar se deveriam reavaliar suas posições.

De fato, como vem observando a Embaixadora Katherine Tai, Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR), estamos todos interconectados e o vírus não tem fronteiras, de modo que somente soluções globais poderão resolver a crise sanitária em que vivemos.

Para chegar a um consenso seria necessária a disseminação dessa percepção, o que não é nada simples no atual contexto da OMC, mas em um cenário otimista a novidade da posição dos EUA pode contribuir para abrir caminho para uma posição intermediária, que possa acomodar os múltiplos interesses dos membros. Ainda com relação ao consenso, é interessante lembrar que, embora não seja uma prática na OMC, um waiver tecnicamente pode ser aprovado por 3/4 dos membros da OMC, conforme o Artigo IX:3(a) do Acordo Constitutivo da OMC.

 

  1. A quebra de patentes ou a suspensão de partes do acordo TRIPS poderiam contribuir para acelerar a produção de vacinas da COVID e a imunização em países em desenvolvimento. Mas, para isso, é necessário o domínio de certas tecnologias, além de capacidade de produção. Na prática, o que isso representa? Quais ações já podem ser tomadas pelo setor privado e governos para contribuir para isso?

 

A suspensão dos direitos de propriedade intelectual não é suficiente para solucionar o problema da escassez de vacinas, até porque, se fosse uma questão exclusivamente de direitos de propriedade intelectual, possivelmente bastaria o uso, pelos governos, do licenciamento compulsório já autorizado pelo acordo TRIPS. Para que a tecnologia protegida possa ser efetivamente explorada, é necessário, no mínimo, capacidade de produção, know-how do processo e acesso aos insumos (IFAs). Na prática, isso quer dizer que, independentemente do waiver ou de licenciamento compulsório, os países que têm capacidade produtiva podem alcançar mais resultados usando o poder de compra do Estado na aquisição de produtos e absorção de tecnologia do setor (o que é feito no Brasil, por exemplo, por meio de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo e Encomendas Tecnológicas). Lamentavelmente, somente alguns países em desenvolvimento têm essa opção. Para o setor privado, pode haver uma oportunidade para que empresas que desejem assumir um posicionamento exemplar de liderança exercitem sua responsabilidade social corporativa, por meio de ações voluntárias e efetivas de colaboração para a difusão da vacina e de tecnologias relacionadas.

 

  1. Os críticos à quebra das patentes alegam que o waiver aos direitos de propriedade intelectual podem afetar os incentivos das empresas produtoras das vacinas em relação à produção de novos imunizantes em futuras pandemias. Além disso, destacam que a simples quebra das patentes não seria suficiente para que outros países, em especial os países em desenvolvimento, produzam suas próprias vacinas. Para reforçar este argumento, destacam que a Moderna voluntariamente suspendeu os direitos de propriedade intelectual sobre a sua vacina, mas não há notícia de produção do imunizante por novos fabricantes. Qual a sua opinião sobre a questão?

 

A questão é complexa e envolve discussões duradouras (e ainda sem aparente consenso) relativas a qual o ponto ótimo de equilíbrio entre incentivos à inovação por meio de direitos de exclusividade e o interesse público. Não há evidências econômicas totalmente claras a respeito, por exemplo. O que parece claro é que não podem ser desconsiderados os investimentos em inovação realizados por quem obteve direitos de propriedade intelectual.

Seria indesejável que, em futuras crises, empresas com capacidade de inovação tenham dúvidas se as regras do jogo serão observadas, caso assumam os riscos de investimentos. Assim, qualquer que seja o resultado prático das discussões na OMC, parece-me que iniciativas relativas à flexibilização desses direitos devem necessariamente envolver remuneração (como no caso das licenças compulsórias previstas no próprio TRIPS).

Além disso, não parece eficaz que o foco fique apenas na flexibilização dos direitos de propriedade intelectual, sendo essencial que as tecnologias se tornem efetivamente acessíveis de forma abrangente.

 As flexibilidades já existentes (ou outras que venham a ser acordadas) só terão efeitos práticos se houver acesso a know-how e capacidade de produção. A longo prazo, mecanismos de colaboração para incentivar a pesquisa, inovação e transferência de tecnologia no que se refere a vacinas e medicamentos podem ser importantes para evitar a dependência de poucos players em futuras crises de saúde pública.

 

  1. Por um lado, o Brasil se opôs à proposta da Índia e da África do Sul para a suspensão de partes do Acordo TRIPS no combate à Covid, apesar da tradição do país em defender flexibilização de propriedade intelectual diante de emergências de saúde pública. Por outro lado, no âmbito do legislativo tramita um projeto para estabelecer a quebra de patentes para as vacinas da COVID. Agora que os EUA estão dispostos a considerar um waiver para o TRIPS, como fica a posição do Brasil nessas discussões?

 

Pela posição histórica do Brasil nas discussões sobre propriedade intelectual e saúde pública, seria talvez esperado algum apoio à proposta da Índia e da África do Sul. O país optou, porém, por defender uma posição intermediária e pragmática, uma espécie de “terceira via”, mais em linha com a posição de países como Austrália e Canadá, e até mesmo com o discurso da diretora-geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala.

O foco é na cooperação internacional e em negociações com players do setor para ampliar a capacidade de produção, distribuição e licenciamento de tecnologias. Posicionamentos políticos à parte, o fato é que meramente afastar os direitos de propriedade intelectual não parece ser uma solução, cabendo lembrar novamente que o acordo TRIPS já apresenta flexibilidades para enfrentar crises de saúde pública. No âmbito interno, da mesma forma, o Projeto de Lei 12/2021 visa fortalecer mecanismos de licenciamento compulsório em situações emergenciais de saúde pública, o que por si só não é uma novidade na nossa legislação.

 Já a posição dos EUA não parece ser propriamente de apoio ao texto proposto por Índia e África do Sul, mas sim de trabalhar em uma proposta conjunta para alcançar alguma flexibilidade, sendo que os EUA têm feito referência ao exemplo da Declaração de Doha sobre o TRIPS e a Saúde Pública, quando a preocupação central era os tratamentos para o vírus HIV.

Ali, a solução foi justamente alguma facilitação do licenciamento compulsório. Assim, não há necessariamente incompatibilidade entre as posições do Brasil e dos EUA, e nem mesmo entre as posições do Brasil na OMC e os aspectos centrais do PL 12/2021 (embora neste haja alguns detalhes potencialmente mais controversos).

 

 

Entrevistada:  Luiza é mestre pela Universidade de Cambridge e especialista em propriedade intelectual pela Organização da Propriedade Intelectual – OMPI e pela Universidade da África do Sul. É advogada no Fialho Salles Advogados, com ampla experiência representando clientes nacionais e estrangeiros em temas associados a propriedade intelectual e comércio internacional. Atualmente, é vice-presidente do subcomitê de marcas da IBA.